quarta-feira, abril 26, 2023

Na Índia, as famílias são diferentes

 por Santha Rama Raul

Artigo originalmente publicado na revista "Seleções" de outubro de 1965

Inúmeras vezes, durante os anos que já passei longe da Índia, tenho ouvido a grata pergunta: "Como vai a família?" Ela faz-me ver que é virtualmente impossível traduzi-la para o meu idioma nativo, o hindi. Na Índia, assim se formularia a pergunta: “Estão todos bem em sua casa?”

A questão é que, na Índia, quase nunca usamos a palavra "família" no sentido, talvez, de apenas o marido, a esposa e os filhos. Na Índia, uma família significa algo muito mais íntimo que um clã, abrangendo numerosos parentes próximos e distantes. Na vida familiar indiana, com todas as suas diversas relações, aprendemos a tomar-nos parte integrante do mundo que nos cerca.

Certa vez citei para um amigo ocidental um provérbio indiano muito conhecido: "A ambição de toda moça hindu é ser sogra." Meu amigo mostrou-se admirado: "Por que ser sogra?", indagou-me.

Não importa que direitos a sociedade negue à mulher hindu; nos complexos e absorventes domínios do seu lar ela é suprema. Com o marido e a mulher freqüentemente vivem todos os filhos do casal e suas noras, todos os netos, e ainda, possivelmente, se os netos varões tiverem idade bastante para o casamento, todos os bisnetos. A mulher mais idosa da casa, a sogra, dirige esse império - que dela exige toda a habilidade, todo o tato e capacidade administrativa.

Além dos membros da família propriamente ditos, haverá também os parentes afastados que, por esta ou aquela razão, adquirem o direito de pertencer a essa vasta organização familiar - um primo viúvo, um tio que não constituiu família ou uma tia solteira. Parentes que vivam perto ou longe tem o direito de vir em "visita" e passar em nossa casa uma semana, seis meses ou o resto da vida, sem que ninguém questione sua presença. Afinal de contas, para que serve a família?

Da casa de minha avó, lembro-me de um primo idoso que nos visitava diariamente. Ele vinha à nossa casa não para gozar da nossa companhia, mas por ser avarento demais para comprar o seu próprio jornal. Às seis da tarde, todos os dias, colocava-se uma cadeira para ele no jardim, tendo sobre o assento o nosso jornal, com uma pedra em cima, para impedir que a crescente brisa vespertina o desfolhasse!

Ele chegava, sentava-se confortavelmente, deleitava-se com o maravilhoso colorido dos crepúsculos indianos, lia o jornal, depois ia embora. Muitas vezes não chegava a trocar uma única palavra com qualquer pessoa da casa. E por que precisaria fazê-lo? Na concepção dos indianos, o horizonte de uma família deve ser o mais amplo possível.

Nenhuma pessoa da família, sobretudo sendo um dos seus membros mais idosos, é jamais relegada ao montão das coisas imprestáveis. Todos continuam sempre sendo queridos e respeitados no ambiente familiar.

A primeira vez que eu regressei à Índia, após ter passado quatro anos estudando numa universidade norte-americana, minha família ardia em curiosidade de saber das minhas exóticas aventuras naquele "novo" país, os Estados Unidos da América. A pergunta que me despertou maior surpresa foi a que me fez uma parenta muito idosa, uma senhora já meio surda e quase cega.

- Diga-me uma coisa - disse ela - é mesmo verdade que na América há senhoras idosas que vivem sós?

- É - confirmei. - Nem sempre há espaço para os velhos na casa de um casal jovem.

- Oh - exclamou ela - que tristeza!

Mas os velhos quase sempre preferem ter o seu próprio canto - expliquei.

- Eu não estava me referindo aos velhos, - atalhou ela, com viva impaciência. - Eu imagino como deve ser triste para os moços.

Não admira, pois, que não exista na Índia um vocábulo que verdadeiramente corresponda à palavra "família' , no sentido restrito que ela tem para os ocidentais. Em toda família asiática não há só espaço, sente-se mesmo a necessidade de todas essas múltiplas relações e das suas diversas contribuições para a vida familiar. A vida familiar indiana envolve a consideração de um mundo de pessoas que poderão não ser do agrado de todos os componentes da casa - as quais, não obstante isso, merecem igual consideração.

- Como, num meio assim tão cheio de gente, pode haver lugar para o recolhimento, para as manifestações de preferência, gosto ou talento individuais? A explicação está na arte peculiarmente indiana de "viver reservadamente em convivência".

Na Índia, a necessidade de refrescar a mente na solidão, de refazer-se do que já se qualificou de "cansaço de convivência", de reabastecer-se de reservas interiores de energia e interesse pela vida é perfeitamente compreendida e profundamente respeitada. Suponhamos que uma das mulheres mais jovens numa casa de "famílias conjuntas" desejasse dispor de algum tempo para si mesma, livre das incessantes exigências dos seus familiares e dos trabalhos caseiros. Bastaria manifestar o desejo de ter um tempo para meditar - digamos uma hora, um dia, ou mesmo um período mais longo - certa de que a sua pretensão, talvez um tanto extravagante no Ocidente, seria satisfeita sem surpresa. Outras pessoas assumiriam as suas tarefas, esperando unicamente que ela um dia lhes retribuísse o gesto da mesma maneira.

A importância da vida contemplativa e do equilíbrio interior é uma constante na tessitura da vida indiana. Mahatma Ghandi costumava reservar todas as segundas-feiras para seu “dia de silêncio”, em que o seu pensamento não sofria a interrupção nem da sua própria voz nem de vozes estranhas. Conheço comerciantes diligentes que passam regularmente uma hora após a sua volta do trabalho praticando ioga em casa e meditando - hábito que não provoca espanto em seus parentes ou amigos, nem mesmo em seus sócios.

Se a "intimidade em público" constitui qualidade a que se deve dar valor, igualmente a urgente necessidade de conviver harmoniosamente com uma série de pessoas diferentes que nos são impostas pelas circunstâncias de nossa vida familiar. Nem mesmo o esposo e esposa hindus escolhem um ao outro; eles são colocados numa situação engendrada pelos mais velhos e só lhes cabe aceitá-la com todas as suas implicações de intimidade que lhes são inerentes. A vida indiana tem várias maneiras de enfrentar as exacerbações da existência cotidiana, que os ocidentais poderiam considerar com proveito, pois o problema não é exclusivamente da Índia. Todos nós passamos parte do dia com pessoas que, na realidade, não nos agradam : patrões , companheiros de trabalho, professores, colegas de estudo, a balconista da casa em que fizemos uma compra, os passageiros do trem ou ônibus em que viajamos, até mesmo os nosso vizinhos.

Teoricamente, a pessoa formada na família indiana sabe que deve utilizar todas as relações humanas que disponha - e não apenas as que sejam da sua preferência – para enriquecer , e não para empobrecer a vida; para ampliar, e não para reduzir a sua visão do mundo e do lugar que nele ocupa. Noutras palavras: o meio de suportar relações que nos são impostas é aproveitá-las para recarregar nossa própria vida.

- Como se consegue isso ? Vou dar algumas sugestões . Voltamos à "sogra" que está à frente de uma família indiana do tipo ortodoxo. Ela deve ser árbitro nas disputas, consoladora na tristeza, confidente, guia nos evitáveis problemas da existência comunitária, fonte de energia espiritual, mantenedora dos valores éticos. Pois ela alimenta o próprio espírito em todas essas relações, retirando das pessoas com as quais convive o que estas lhe possam oferecer espiritualmente, emotivamente, como criaturas humanas. Isto só se consegue à base de um senso de respeito às pessoas - não só às jovens mas também às velhas; não apenas pelo sentimento de gratidão que se deve aos pais , porém atribuindo à presença dessas pessoas um verdadeiro valor e reconhecendo que todas elas podem contribuir para a vida daqueles que as cercam.

Uma idosa e querida tia, a quem um dia expus um problema de ordem pessoal, respondeu-me tranquilamente: "Meu filho, faça apenas uma pergunta: quem manda afinal, os seus desejos, ou você mesmo?" . Tenho muitas vezes refletido sobre esta resposta, valendo-me dela para orientar-me, e com disso me alegro pelo fato de minha casa ter sido suficientemente grande para abrigá-la.

Uma família indiana se enriquece ainda pelo fato de o agrupamento das pessoas pela sua idade ser muito menos comum do que no Ocidente.

Já vi muita criança brincando em bandos - e ao mesmo tempo cuidando de recém-nascidos de sua família. As crianças maiores não se envergonham de terem de zelar pelas menores. Adultos ainda jovens não esperam associar-se principalmente com pessoas da sua idade. Promover umas festa importa em convidar automaticamente pessoas de todas as idades.

Num espetáculo teatral que se realize em qualquer vilarejo indiano, para apresentação dos grandes episódios da literatura épica tradicional, um marido e sua esposa irão com os filhos levando ao colo os que ainda não saibam andar, e providenciarão para que os velhos tenham bastões para se arrimarem pelo caminho, exigindo a presença dos adolescentes cépticos, para cujo paladar os clássicos talvez sejam demasiado maçantes, destarte fazendo da diversão noturna motivo para uma verdadeira "reunião de família".

Conviver assim com tantas pessoas não conduz à uniformidade, e sim à diversidade, pois cada um reflete preciosamente as múltiplas combinações das diversas personalidades com que priva. Em todas as várias manifestações da vida familiar - a reserva individual, o sentimento de coletividade e o direito à uma visão pessoal do mundo - a Índia, um país pobre, mostra-nos o segredo de uma rica existência. Porque; como disse o naturalista - filósofo Henry David Thoreau, que foi muito influenciado pela Índia: "A única riqueza é a vida."


segunda-feira, dezembro 06, 2021

MENSAGEM DE NATAL - 2021


Vão-se passando as vírgulas do tempo, e cada vez mais parece ficar difícil para eu escrever uma mensagem de Natal.

Não reputo essa dificuldade a nada fora de mim, mas às minhas próprias limitações, que parecem se destacar com a idade, e a pacificação do animal que me habita.
Talvez, aliado a isso, o prelúdio de uma nova era, um Apocalipse próximo, ou o fim do Kali Yuga, dá-me conta da possível inutilidade de escrever uma mensagem tal como esta.
Melhor seria ficar imerso na minha solidão interior, e esperar que a luminosidade do Cristo possa perdoar meus pecados? Provavelmente o silêncio sussurrará sua resposta ao meu coração.
Contudo, expressando a partir daquele ensimesmado em meu cubículo interno, esta é única data natalícia crucificada no tempo. A tragédia do Gólgota permeia a luminosidade da Estrela do Oriente, juntando Alfa e Ômega da vida dEste a quem não sou digno de beijar seus pés, mas que ao mesmo tempo me abraça e me eleva e me diz: “O Reino de Deus está dentro de vós”.
Belém marca meus passos desde o nascimento e, com certeza, marcará meu último suspiro nesse lapso de eternidade ao qual chamei vida, mas que no fundo é apenas uma flor adornando minha memória.
E Este, cuja lembrança do nascimento cultuamos e comemoramos em dezembro, é o fruto maduro da Luz Superior, cuja semente nasceu, cresceu, tornou-se uma árvore, e em cuja sombra hoje nos guardamos quando nos dessedentamos em nossa jornada.
Portanto, sublinhando nossa essência, presente da própria Divindade, habitando neste crepúsculo de Era o nosso cerne, fazendo-nos refletir tanto sobre a inutilidade da vaidade, quanto sobre a vida interior que nos alimenta e ilumina, é que surgem essas palavras de gratidão.
Amo estar vivo. Mas a presença da Divindade é que é o verdadeiro tesouro: com Deus, apenas me importa ser o cálice vazio e iluminado, penetrado por Sua Graça.
Que este Natal extraordinariamente tocado pela natureza das circunstâncias, mas cheio de esperança para os próximos tempos, seja o esteio da felicidade e harmonia para você que me lê.
E que o menino Jesus, o Cristo, o verdadeiro Messias, possa encontrar morada em mim, em ti, em todos nós, como se fôssemos verdadeiras manjedouras vivas.
Feliz Natal e um Próspero Ano Novo!



domingo, dezembro 06, 2020

QUEM SOU EU?

 Numa primeira vista lançada sobre o assunto, talvez seja essa uma pergunta que não tenha resposta, ou uma pergunta feita para que esta não haja: a pergunta funcionaria como um koan. Talvez, também, todas as elucubrações sobre o tema, toda a história da filosofia, não são mais que tergiversações para indicar ao homem algum caminho, alguma conformação ao coração daquele que tem um destino inexorável pela frente. Contudo, se a pergunta está lançada, quem seria eu para não enfrentá-la?

Será necessário, no meu ponto de vista, reestruturar a pergunta e começar a me perguntar algumas obviedades, como por exemplo, quem eu não sou. E um psicanalista, ou psicólogo, ou psiquiatra poderá observar minhas palavras e indicar-me a fazer um tratamento sério e profundo, quem sabe até num sanatório. 

Contudo, já estou internado neste mundo e navegando nele agradecendo à vida e à oportunidade de estar vivo. E neste caso, quanto mais as horas se acumulam e se esboroam diante de mim, mais tenho claro que eu não sou aquilo que pensam de mim. Que eu não sou a imagem que me fiz. Que eu não sou a educação que me deram. Que eu não sou aquele que me olha desde o espelho, de uma forma invertida.

Tampouco não sou o corpo. Este corpo virará pó em alguns anos, e depois de 10 trilhões de anos não haverá nem sequer a mínima menção a alguém, nem talvez existam corpos. E talvez nem o existir seja um fato. Talvez nem... Somente um ponto, que não tem existência real neste mundo, serviria para descrever algo após dez trilhões de anos.

Se não sou um corpo, apesar de ser um homem heterossexual, não sou também um homem na acepção limitada da palavra, o macho itinerante que busca seu lugar no mundo. Porque este macho também virará pó, e será enterrado, ou eliminado pela cremação e, de toda forma, virará pó que alimentará os vermes, as plantas, e retornará ao ciclo da existência natural, servindo, talvez, de suporte a outros seres.

Não sou o pai, o marido, o filho. Neste imenso palco, tudo isso que anotei até agora não são nada mais que papéis representados por este simples inseto que olha estupefato para a mansidão do universo. Lembro-me de um livro de Yasunari Kawabata, onde o personagem principal, no final do romance "O País das Neves", arrebatado pela tragédia que o abatera, olha para a via-láctea, e esta adentra a si mesmo, numa epifania. Desde os dezesseis anos, minha vida é esta epifania.

Sabedor disso, não posso ser o servidor público: também seria um papel. Tampouco posso ser o eleitor, ou ser o consumidor (palavra que para mim é abjeta, onde se reduz todos os seres humanos a apenas um pífio aspecto da sua vida). No fundo, nada disso me identifica, apesar que, sendo um o ator secundário desta complexa história, ainda assim exerço meu papel como um cidadao comum, seguindo, externamente os paradigmas impostos, enquanto que por dentro busco algo mais que os papéis impositivos da sociedade. Se o imperador Augusto, o homem mais importante do Império Romano, considerava-se um ator, a ponto de dizer como últimas palavras "Eu desempenhei bem meu papel? Então aplaudam quando eu morrer", quem seria eu para dizer-me autor da minha própria peça?

Lembro-me bem das palavras que disse ao meu pai, com dezoito anos, antes de sair de casa: 

"Pai, eu me sinto como um náufrago. Minha vida neste momento não tem sentido. Tenho que deixar essa vida, porque eu vejo uma praia, e se eu não nadar até ela eu vou morrer". Naquela época, saí de casa, e tive experiências que me marcaram: fui morador de rua, lavrador, repórter político. Em suma, encontrei-me com a realidade da existência e suas agruras de ter que pedir esmola, comida, de carregar cana nas costas, de enfrentar os ofídios no meio da floresta amazônica, de ouvir os rugidos das onças quando ia dormir, etc.

No final das contas, eu não sou nada, apenas instrumento. É vaidade minha pensar em ser o autor, e não o ator. O palco estava aqui antes de minha chegada, e continuará depois. A peça já havia começado e continuará sem mim. 

Pois bem, a pergunta a ser respondida está próxima de sua solução. Afinal, quem sou eu? 

Não há palavras a dizer, não há gramática ou semântica para explicar o mistério. Esta palavra, mistério, que provém do verbo grego "mu", que quer dizer "silenciar", de onde vêm as palavras "místico", "mudo", esta palavra em si mesma é silêncio, e pronunciar o que significa traz à tona uma contradição intraduzível. Apenas respiro, fecho os olhos, feneço o diálogo interno, e espero.

Pois bem, me arrisco então com algo que percebi quando tinha vinte e quatro anos: eu sou a testemunha. Testemunho meu papel. Testemunho minha vida. Testemunho cada respiração. Testemunho cada momento de amor. Testemunho que, ao servir o próximo, ele não é mais o "próximo", mas eu mesmo. Testemunho que quando agradeço, na realidade agradeço a esta túnica inconsútil que tenho a oportunidade de vestir, e agradeço à vida, e agradeço a Deus.

Eu sou a testemunha. Meu corpo e minha consciência é a máscara, a persona, que é manejada pelo personagem supraconsciente (aquele que age por trás da máscara). Quando estiver como uma flauta vazia, tocarei a melodia harmonicamente. E, quem sabe, chegarei ao ponto do que se diz no "Ken Upanishad":


"Pelos desejos de quem, impelida por quem, arde a mente por seus objetos?
Impelido por quem, realiza o prana —a força vital— sua função?
Impelidos por quem falam os homens?
Que Deva, que deus, dirige os olhos e os ouvidos?"

"O Atman é o ouvido do ouvido, a mente da mente, a fala, da fala, o prana do prana, o olho do olho.

Os sábios, ao separarem o Atman das funções sensoriais, elevam-se acima da vida dos sentidos e alcançam a imortalidade."

sexta-feira, novembro 06, 2020

INICIAÇÃO (Fernando Pessoa)

Não dormes sob os ciprestes,

Pois não há sono no mundo.

......

O corpo é a sombra das vestes

Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte

E a sombra acabou sem ser.

Vais na noite só recorte,

Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro

Tiram-te os Anjos a capa.

Segues sem capa no ombro,

Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada

Despem-te e deixam-te nu.

Não tens vestes, não tens nada:

Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,

Os Deuses despem-te mais.

Teu corpo cessa, alma externa,

Mas vês que são teus iguais.

......

A sombra das tuas vestes

Ficou entre nós na Sorte.

Não estás morto, entre ciprestes.

......

Neófito, não há morte.


(Dedico este poema à memória de meu amado amigo e irmão, Carlos José Feital, que foi ao Oriente Eterno na data de hoje, 06 de novembro de 2020)

segunda-feira, abril 16, 2018

NENHUM HOMEM É UMA ILHA... (o que é a felicidade?)



“nenhum homem é uma ilha, que se basta a si mesma. Somos parte de
um continente; se um simples pedaço de terra é levado
pelo mar, a Europa inteira fica menor. A morte
de cada ser humano me diminui, porque
sou parte da humanidade. Portanto,
não me pergunte por quem
os sinos dobram:
eles dobram
por ti.”

John Donne (séc. XVI)

Quando eu leio este poema, posso entender que alguém não queira colocar a responsabilidade de sua felicidade nas costas de outra pessoa. A responsabilidade sobre si mesmo é algo primordial a todo ser humano. Afinal, eu lavro minha felicidade através de meus pensamentos, sentimentos e palavras.

Contudo, entendo também que alguém possa dizer que deve ter a mesma atitude na tristeza ou na alegria. Mas olho com preocupação um pensamento muito em voga no mundo moderno no qual se diz que não se depende de ninguém a felicidade de uma pessoa. Que podemos prescindir dos outros como se fôssemos autossuficientes em nossas vidas.

Houvesse nesse pensamento, ou nessa forma de se enxergar o mundo, uma palavra, ou uma menção, ao Poder Superior, eu poderia concordar com ela. Contudo, quando alguém diz “decidi ser feliz como indivíduo” – se esquecendo de dizer “Deus decidiu me fazer feliz”, mostra de forma muito clara o desconhecimento de como são as coisas no plano espiritual.

Ninguém decide ser feliz tendo a felicidade como um fim em si mesma. As tradições antigas dizem claramente que a benção vem apenas e tão somente de Deus, e que a recepção de uma felicidade não é devido a uma questão de escolha de ser feliz, mas a de ser escolhido dentre aqueles que serão abençoados pela face divina neste caminho, porque há aqueles que sofrem pelo amor a Deus, e este sofrimento é capaz de lhes trazer tal grau de desprendimento que, consequentemente, faz com que eles alcancem alturas maiores do que a própria felicidade. Ou se poderia, também, dizer que se transcenda a própria felicidade, sem deixar de ser feliz.

A felicidade terrena é muito limitada. Esta felicidade pode ser escolhida, mas é falsa. Por que deveria eu escolher a felicidade terrena quando existe algo mais alto e inefável que é a meta que me foi presenteada? “Busca o Reino de Deus e sua Justiça e tudo o mais lhe será dado como acréscimo”. Onde está a palavra felicidade?

Se a pessoa soubesse qual é a origem da palavra felicidade, não diria tal coisa. Isto demonstra uma ignorância no dizer. A palavra felicidade vem do verbo “felare” (chupar). Interessante, não? E por que os romanos escolheram tal palavra para designar um estado de bem-aventurança? Porque eles imaginaram a suprema felicidade simbolizada por uma mãe amamentando uma criança. Ou seja: a mãe em harmonia com o filho ao dar, e o filho em harmonia ao receber.

Portanto, a própria origem da palavra “felicidade” tem a imagem de duas pessoas(!), e não de apenas uma. Assim, pode alguém ser feliz sozinho??? Mas da mesma forma me pergunto: pode alguém ser feliz apegado a alguém?

O homem só pode ser feliz se abençoado pelo Superior. E ele não escolhe isso. É arrogância, segundo meu entendimento, achar que se pode ser feliz sozinho ou escolher ser feliz. O homem pode escolher buscar o caminho da espiritualidade, buscar o caminho de Deus, como suprema meta de sua vida. Sozinho pode-se chegar a alturas maiores que a própria felicidade. Mas o sofrimento de qualquer homem me diminui. Isso é um ponto em que toda humanidade se questiona, como se fosse um paradoxo...

Lembre-se dos exemplos dos Bodisatwas, os Budas de Compaixão, em que em busca que trazer paz à humanidade se dispõem a trabalhar e prol do engrandecimento de seu próximo. Muito claramente Jesus também diz que o resumo dos dez mandamentos é “amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como a si mesmo”. E se não houver próximo, como fazer?

Como solução a este aparente paradoxo de felicidade, apego e desapego, existe um ensinamento budista que se chama “caminho do meio”. Ou seja, nem totalmente tenso e nem totalmente frouxo, mas na medida certa. Na busca de encontrar o caminho certo, não busquemos relaxar nossos compromissos com o próximo, e nem afogá-lo com nossa insegurança e com nosso apego a ele. O Caminho do meio passa por se entender que “nenhum homem é uma ilha”. E que se fôssemos totalmente independentes uns dos outros, não haveria sequer necessidade de pais, mães, filhos e filhas.

Existe um ponto em que o homem pode prescindir totalmente do outro? Sim, quando compreender que o “outro” é apenas uma ficção. Que não existe o outro, mas Deus e tão somente Deus (namastê). Mas antes de compreender isso, a afirmação de que se é totalmente independente do outro, ou totalmente dependente, pode soar à compreensão  como arrogância ou ignorância. Por isso: Luz, para iluminar a compreensão; Paz, devido à fuga da ignorância e estabelecimento da Luz; Amor para disseminar a Luz que recebeu e eliminar a ignorância em direção a Deus.

terça-feira, março 20, 2018

Um poema antigo...

I - Intróito

Surdamente, no fundo de um lago plácido
um vulcão espera o momento certo
de ferver e explodir:

Vê-se que a superfície não obedece
àquilo que o coração conhece
e quer expandir.

II - Dúvida

Uma barca serena, que em mim navega
toca-me sua quilha inquieta
com o vento a soprar.

Serei eu, um parvo, geografia e farol
neste imenso lago profundo
para quem quer navegar?

III - O lago, na verdade...

Extravasando-se de tudo, iluminando-me,
o Céu transmuta-se no atlas
que me há de nortear.

Superfície e fundura se casam no tempo:
No perfeito esponsal da alma
já não há o que nomear.


Para MRRS

segunda-feira, março 27, 2017

Perfeição é possível?

Perfeição é entregar a mensagem interior. A princípio, realizar suas potencialidades humanas para chegar a se unir à Divindade. Não confundir com perfeccionismo, que seria a vontade de fazer tudo "certinho".

Enquanto o perfeccionismo é artificial, fruto da individualidade, a perfeição se manifesta com naturalidade, transcendendo o indivíduo, trazendo com seu poder terapêutico a destruição do ego e a manifestação da glória divina.

Portanto, a perfeição só pode ser manifestada quando o ego deixa de existir (porque ele se baseia  apenas e tão somente na ilusão de que "é"), quando a vontade mesquinha se torna nula e apenas resta o silêncio interior, o "pensamento firme".

É possível?

O grande trabalho da modernidade é buscar destruir a espiritualidade, trazendo dúvida a qualquer esperança que alguém possa ter de algum dia o ser humano expressar a divindade neste mundo. No entanto, quando Jesus ordena "sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito", isso demonstra a factibilidade disso.

Eis, portanto, o significado da "morte da semente".