Convívio, II, 1
Dante Alighieri
Os escritos podem ser entendidos e devem ser expostos principalmente em quatro sentidos. A um chama-se literal, [e este é o que não ultrapassa a letra da narrativa ficcional, como por exemplo as fábulas dos poetas. Ao outro chama-se alegórico,] e este é o que se esconde sob o manto dessas fábulas, e é uma verdade escondida sob uma bela mentira: como por exemplo quando Ovídio diz que Orfeu com sua cítara amansava as feras, e comovia as árvores e as pedras; o que significa que o homem sábio com o instrumento de sua voz amansa e humilha os corações cruéis, e comove à sua vontade aos que não têm vida de ciência e de arte; e aqueles que não têm vida racional nenhuma são quase como as pedras. (...) Na verdade os teólogos tomam esse sentido de maneira diversa dos poetas; mas como minha intenção é seguir aqui a maneira dos poetas, tomo o sentido alegórico conforme é utilizado pelos poetas.
O terceiro sentido chama-se moral, e
é aquele que os leitores devem procurar descobrir nos escritos para sua
utilidade e dos seus descendentes: como por exemplo pode-se aprender no
Evangelho, quando Cristo saiu para o monte a fim de transfigurar-se, que dos
doze apóstolos levou consigo apenas três; disto pode-se entender moralmente que
nas coisas secretíssimas devemos ter pouca companhia.
O quarto sentido chama-se anagógico,
quer dizer supra-sentido; e este ocorre quando se expõe espiritualmente um
escrito, o qual, pelas coisas significadas, significa as sublimes coisas da
glória eterna, como pode-se ver naquele canto do Profeta que diz que, na saída
do povo de Israel do Egito, a Judéia é feita santa e livre. Se é manifesto que
isto é verdadeiro segundo a letra, não é menos verdadeiro o que disto se
entende espiritualmente, ou seja, que na saída da alma do pecado esta torna-se
santa e livre em sua potestade. E, ao demonstrar isto, sempre o literal deve
estar à frente, como aquele em cujo sentido os outros estão incluídos, e sem o
qual seria impossível e irracional entendê-los, principalmente o alegórico. É
impossível porque em toda coisa em que há dentro e fora é impossível chegar ao
que está dentro sem primeiro passar pelo fora; portanto, como acontece que na
escritura [o sentido literal] esteja sempre do lado de fora, é impossível
chegar ao outro, principalmente ao alegórico, sem primeiro passar pelo literal.
Ademais é impossível porque em toda coisa, natural e artificial, é impossível
chegar à forma sem primeiro estar disposto o sujeito em que a forma deve estar:
assim é impossível realizar-se a forma do ouro se a matéria, isto é, o seu
sujeito, não estiver primeiro assimilada e preparada; e a forma da arca
realizar-se caso sua matéria, que é a madeira, não estiver primeiro disposta e
preparada. Conclui-se disto que, sendo o sentido literal sempre sujeito e
matéria dos outros, principalmente do alegórico, é impossível chegar ao
conhecimento dos outros sem o seu conhecimento. Ademais é impossível porque em
qualquer coisa, natural e artificial, é impossível proceder se não se
estabelece primeiro o fundamento, como em uma casa ou como no estudo: portanto,
dado que o demonstrar é edificação de ciência, e a demonstração literal é o
fundamento das outras, principalmente da alegórica, é impossível chegar às
outras sem primeiro passar por ela.
Ademais, ainda que fosse possível,
seria irracional, quer dizer, fora da ordem, e portanto proceder-se-ia com
muita fadiga e com muitos erros. Daí que, se como diz o Filósofo no primeiro
livro da Física a natureza quer que o nosso conhecimento se faça ordenadamente,
indo daquilo que conhecemos melhor para aquilo que não conhecemos tão bem: digo
que a natureza quer na medida em que essa via de conhecer é em nós naturalmente
inata. E se os outros sentidos são menos compreendidos que o literal - como de
fato é manifesto - seria irracional proceder à sua demonstração se o literal
não fosse demonstrado.
In "Convivio", II, 1. Tradução de Roberto Mallet.
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