domingo, dezembro 06, 2020

QUEM SOU EU?

 Numa primeira vista lançada sobre o assunto, talvez seja essa uma pergunta que não tenha resposta, ou uma pergunta feita para que esta não haja: a pergunta funcionaria como um koan. Talvez, também, todas as elucubrações sobre o tema, toda a história da filosofia, não são mais que tergiversações para indicar ao homem algum caminho, alguma conformação ao coração daquele que tem um destino inexorável pela frente. Contudo, se a pergunta está lançada, quem seria eu para não enfrentá-la?

Será necessário, no meu ponto de vista, reestruturar a pergunta e começar a me perguntar algumas obviedades, como por exemplo, quem eu não sou. E um psicanalista, ou psicólogo, ou psiquiatra poderá observar minhas palavras e indicar-me a fazer um tratamento sério e profundo, quem sabe até num sanatório. 

Contudo, já estou internado neste mundo e navegando nele agradecendo à vida e à oportunidade de estar vivo. E neste caso, quanto mais as horas se acumulam e se esboroam diante de mim, mais tenho claro que eu não sou aquilo que pensam de mim. Que eu não sou a imagem que me fiz. Que eu não sou a educação que me deram. Que eu não sou aquele que me olha desde o espelho, de uma forma invertida.

Tampouco não sou o corpo. Este corpo virará pó em alguns anos, e depois de 10 trilhões de anos não haverá nem sequer a mínima menção a alguém, nem talvez existam corpos. E talvez nem o existir seja um fato. Talvez nem... Somente um ponto, que não tem existência real neste mundo, serviria para descrever algo após dez trilhões de anos.

Se não sou um corpo, apesar de ser um homem heterossexual, não sou também um homem na acepção limitada da palavra, o macho itinerante que busca seu lugar no mundo. Porque este macho também virará pó, e será enterrado, ou eliminado pela cremação e, de toda forma, virará pó que alimentará os vermes, as plantas, e retornará ao ciclo da existência natural, servindo, talvez, de suporte a outros seres.

Não sou o pai, o marido, o filho. Neste imenso palco, tudo isso que anotei até agora não são nada mais que papéis representados por este simples inseto que olha estupefato para a mansidão do universo. Lembro-me de um livro de Yasunari Kawabata, onde o personagem principal, no final do romance "O País das Neves", arrebatado pela tragédia que o abatera, olha para a via-láctea, e esta adentra a si mesmo, numa epifania. Desde os dezesseis anos, minha vida é esta epifania.

Sabedor disso, não posso ser o servidor público: também seria um papel. Tampouco posso ser o eleitor, ou ser o consumidor (palavra que para mim é abjeta, onde se reduz todos os seres humanos a apenas um pífio aspecto da sua vida). No fundo, nada disso me identifica, apesar que, sendo um o ator secundário desta complexa história, ainda assim exerço meu papel como um cidadao comum, seguindo, externamente os paradigmas impostos, enquanto que por dentro busco algo mais que os papéis impositivos da sociedade. Se o imperador Augusto, o homem mais importante do Império Romano, considerava-se um ator, a ponto de dizer como últimas palavras "Eu desempenhei bem meu papel? Então aplaudam quando eu morrer", quem seria eu para dizer-me autor da minha própria peça?

Lembro-me bem das palavras que disse ao meu pai, com dezoito anos, antes de sair de casa: 

"Pai, eu me sinto como um náufrago. Minha vida neste momento não tem sentido. Tenho que deixar essa vida, porque eu vejo uma praia, e se eu não nadar até ela eu vou morrer". Naquela época, saí de casa, e tive experiências que me marcaram: fui morador de rua, lavrador, repórter político. Em suma, encontrei-me com a realidade da existência e suas agruras de ter que pedir esmola, comida, de carregar cana nas costas, de enfrentar os ofídios no meio da floresta amazônica, de ouvir os rugidos das onças quando ia dormir, etc.

No final das contas, eu não sou nada, apenas instrumento. É vaidade minha pensar em ser o autor, e não o ator. O palco estava aqui antes de minha chegada, e continuará depois. A peça já havia começado e continuará sem mim. 

Pois bem, a pergunta a ser respondida está próxima de sua solução. Afinal, quem sou eu? 

Não há palavras a dizer, não há gramática ou semântica para explicar o mistério. Esta palavra, mistério, que provém do verbo grego "mu", que quer dizer "silenciar", de onde vêm as palavras "místico", "mudo", esta palavra em si mesma é silêncio, e pronunciar o que significa traz à tona uma contradição intraduzível. Apenas respiro, fecho os olhos, feneço o diálogo interno, e espero.

Pois bem, me arrisco então com algo que percebi quando tinha vinte e quatro anos: eu sou a testemunha. Testemunho meu papel. Testemunho minha vida. Testemunho cada respiração. Testemunho cada momento de amor. Testemunho que, ao servir o próximo, ele não é mais o "próximo", mas eu mesmo. Testemunho que quando agradeço, na realidade agradeço a esta túnica inconsútil que tenho a oportunidade de vestir, e agradeço à vida, e agradeço a Deus.

Eu sou a testemunha. Meu corpo e minha consciência é a máscara, a persona, que é manejada pelo personagem supraconsciente (aquele que age por trás da máscara). Quando estiver como uma flauta vazia, tocarei a melodia harmonicamente. E, quem sabe, chegarei ao ponto do que se diz no "Ken Upanishad":


"Pelos desejos de quem, impelida por quem, arde a mente por seus objetos?
Impelido por quem, realiza o prana —a força vital— sua função?
Impelidos por quem falam os homens?
Que Deva, que deus, dirige os olhos e os ouvidos?"

"O Atman é o ouvido do ouvido, a mente da mente, a fala, da fala, o prana do prana, o olho do olho.

Os sábios, ao separarem o Atman das funções sensoriais, elevam-se acima da vida dos sentidos e alcançam a imortalidade."